Consciência Negra: O que a negritude de Machado de Assis nos ensina sobre o racismo no Brasil?
Machado de Assis, considerado o maior escritor brasileiro, é uma figura emblemática quando se trata da história racial do Brasil. Negro, criado em um contexto de grande desigualdade social no século XIX, ele conseguiu alcançar um lugar de destaque em uma sociedade predominantemente branca. Contudo, sua identidade racial, muitas vezes silenciada ou minimizada pela história oficial, levanta questões importantes sobre a forma como o Brasil lida com o racismo.
A controvérsia em torno da identidade racial de Machado começa já em seu atestado de óbito. Quando faleceu aos 69 anos, em 1908, a certidão de seu falecimento, assinada pelo escrivão Olympio da Silva Pereira, indicava sua cor como "branca". Esse dado gerou discussões intensas, especialmente nos últimos anos, quando pesquisadores começaram a questionar como o escritor se via e como ele foi percebido por seus contemporâneos.
O significado da cor de Machado de Assis
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A historiadora Raquel Machado Gonçalves Campos, professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), destaca que não há registros definitivos sobre como Machado se identificava racialmente. Documentos como cartas e registros de sua época sugerem diferentes visões sobre sua identidade. Um exemplo disso é uma carta de 1871, do poeta português Gonçalves Crespo, que descrevia Machado como "de cor", um termo utilizado na época para se referir a pessoas negras.
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Além disso, Cristiane Garcia, pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), revela que, nos primeiros anos de sua vida, Machado de Assis foi envolvido com a tipografia de Francisco de Paula Brito, um editor e escritor negro. Esse ambiente de sociabilidade negra o influenciou profundamente, tanto pessoal quanto profissionalmente. A tipografia de Brito foi responsável pela impressão de importantes publicações da imprensa negra no Brasil, um fator que também contribui para a percepção de que Machado, ao menos na juventude, se via como parte dessa comunidade negra.
Diversas perspectivas sobre sua identidade racial
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Há várias interpretações sobre como outros viam a cor de Machado. No obituário escrito por José Veríssimo, um amigo de Machado, ele é descrito como "mulato", mas Joaquim Nabuco, outro amigo do escritor, criticou essa classificação, dizendo que Machado se via como branco. Essa divergência reflete o contexto social da época, onde o racismo estava profundamente enraizado e a identidade racial de indivíduos como Machado era muitas vezes tratada de forma ambígua.
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A historiografia sobre Machado também revela diferentes abordagens. Por exemplo, Lúcia Miguel Pereira, uma biógrafa de Machado, preferiu utilizar termos como "mulatinho" ou "mestiço" para descrevê-lo. Já Luiz Viana Filho, em sua biografia de 1965, destacou a ideia de que Machado, ao longo da vida, teria "embranquecido" fisicamente, um fenômeno que, segundo alguns, explicaria sua ascensão no mundo literário e intelectual brasileiro.
O “Embranquecimento” de Machado de Assis e o racismo estrutural
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A questão do "embranquecimento" de Machado de Assis é um tema recorrente nas biografias sobre ele. Esse conceito reflete a tentativa, tanto por parte de alguns biógrafos quanto da sociedade, de reduzir a visibilidade da negritude de Machado, o que estava alinhado com o ideal de "democracia racial" promovido pelo Brasil durante grande parte do século XX. A ideia de que o Brasil seria uma nação miscigenada, onde as diferenças raciais seriam minimizadas, foi, na realidade, uma forma de mascarar o racismo estrutural e evitar que se enfrentasse as desigualdades raciais de maneira mais direta.
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Este processo de "embranquecimento" pode ser visto como uma forma de acomodação social. A ascensão de Machado ao status de grande escritor foi muitas vezes facilitada por sua adaptação a padrões estéticos e sociais que favoreciam os brancos. No entanto, isso também revela um paradoxo: embora Machado tenha sido tratado como um exemplo de sucesso social e literário, sua origem negra, junto com os desafios enfrentados devido ao racismo, ainda permanecem questões não resolvidas em sua biografia.
A dificuldade de classificar Machado de Assis
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O debate sobre a identidade racial de Machado de Assis não tem uma resposta definitiva, e isso nos leva a refletir sobre como a sociedade brasileira, ao longo do tempo, tem lidado com a questão do racismo e da negritude. A falta de clareza sobre como Machado se via e como ele foi classificado pode ser vista como um reflexo das complexidades do racismo brasileiro, onde a negritude é muitas vezes subestimada, ignorada ou apagada.
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A historiadora Raquel Campos conclui que, embora não saibamos exatamente como Machado se identificava, é provável que ele utilizasse termos como "mulato" ou "homem de cor", conforme o vocabulário da época. Porém, o fato de ele nunca ter se autodenominado "negro" pode também ser entendido dentro do contexto de um Brasil onde, durante muito tempo, a ideia de "embranquecer" socialmente foi vista como um ideal a ser alcançado.
A relevância de Machado de Assis na luta contra o Racismo
- Machado de Assis continua sendo um ícone importante para a discussão sobre racismo e identidade racial no Brasil. Sua vida e obra são testemunhos da luta de uma pessoa negra que conseguiu transcender barreiras sociais e culturais, mas também um reflexo das contradições da sociedade brasileira em relação à raça. Compreender sua trajetória e as múltiplas interpretações sobre sua identidade racial ajuda a iluminar as complexas questões do racismo estrutural e da luta por afirmação e visibilidade da população negra no Brasil.
Ao refletirmos sobre a negritude de Machado de Assis, somos lembrados das dificuldades históricas enfrentadas pela população negra, mas também das suas contribuições valiosas para a cultura e a literatura do país. Isso nos desafia a continuar questionando o racismo e as formas como ele se manifesta nas estruturas sociais e culturais brasileiras até hoje.